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'Pai, me interna': homem descobre filha em grupos online de automutilação

  • bitencourtludy
  • 28 de jul.
  • 6 min de leitura
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Jovem estava em grupos que incentivavam automutilação e outros comportamentos perigosos

Imagem: Getty Images


Aviso: este texto contém linguagem forte e relatos sensíveis, que podem servir de gatilho.


Quando o empresário Paulo* viu os primeiros cortes no corpo da filha Júlia*, com 12 anos à época, atribuiu à tristeza e à ausência da mãe, que havia morrido de câncer anos antes. Júlia fazia terapia, tinha boas notas, amigos, rotina. Tudo parecia "normal" —até que não era mais.


A adolescente escondia os ferimentos e ria durante os atos de automutilação. "Era uma mistura de vilã e vítima, de tristeza e euforia." Paulo só descobriu mais tarde, mas o comportamento da filha também era parte de um jogo virtual violento


Foi após uma crise da filha que Paulo pediu a funcionária que trabalhava em sua casa para ver o celular de Júlia. Ali, entendeu que havia uma rede por trás das ações dela.


Começou no Roblox, uma plataforma online onde usuários jogam e criam jogos feitos por outros. Lá, ela conheceu um grupo que a convidou para o Discord, plataforma de comunicação por voz, vídeo e texto, usada principalmente por comunidades online e gamers.


Ali, o desafio era fazer "lulz", uma espécie de "mestre mandou do mal". As ordens vinham de outros adolescentes: cortar a pele, jogar perfume nos cortes, beber água da privada e até tatuar um símbolo nazista no rosto. Áudios mostravam pessoas aplaudindo e vibrando por seus "desafios concluídos".


Foi a própria garota quem pediu ao pai, em uma das crises, que fizesse algo por ela. "Pai, me interna", disse. Paulo ligou imediatamente para a psiquiatra e levaram-na ao hospital.


O que os jovens fazem na internet?

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Série 'Adolescência' mostrou a dificuldade de acesso dos adultos ao mundo digital dos mais novos

Imagem: Divulgação/Netflix


O caso de Júlia e Paulo evidencia a dificuldade dos pais de adolescentes de compreenderem como o comportamento dos filhos pode estar ligado à forma como eles se relacionam nas redes sociais.


O tema foi trazido à tona recentemente por meio da série "Adolescência", da Netflix, que mostra a surpresa da família de um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega da escola.


Na produção fictícia, os adultos se chocavam ao descobrir que os adolescentes formavam uma rede de comunicação (muitas vezes violenta e cifrada em emojis e códigos) na internet.


'Entendi que havia influência externa'

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Paulo se surpreendeu com a presença da filha em grupos online que incentivavam automutilação

Imagem: Arquivo pessoal


Quando soube que a filha participava de desafios na internet, Paulo ficou devastado e, ao mesmo tempo, aliviado


''Quando entendi que havia influência externa, que alguém estava mandando ela fazer aquilo, soube que dava para combater.''

Paulo


A jovem ficou desconectada por um tempo do celular e isso até interrompeu o ciclo, mas, nos meses seguintes, qualquer acesso ao celular significava uma recaída. Júlia dizia que precisava do aparelho para a escola —e voltava aos grupos. Paulo então entendeu que "não tem meio-termo".


O pai substituiu o celular por um modelo simples, com chamadas e SMS. Espelhou o aparelho no computador. Mesmo assim, ela tentou burlar: usou o app escolar, o Classroom, para conversar em chats.


Você tira o álcool da casa de um alcoólatra. Mas o celular? O celular está em todo lugar. Muito se fala sobre a série Adolescência, da Netflix, mas o que a gente está vendo na vida real é bem pior.

Paulo


'Basta um link'

A história de Paulo virou livro. Foi o modo que encontrou de alertar outros pais sobre os riscos da exposição de crianças e adolescentes na internet. "O susto salva. Se minha história salvar uma família, já valeu."


Hoje, segundo Paulo, Júlia está melhor e colocando seus sentimentos no papel ao escrever o próprio livro. "Ela virou uma aliada nessa causa", diz o pai, que completa: "mas sigo em alerta, porque basta um clique, basta um link"


'Os desafios não estão mais na deep web'

A psicóloga Fabiana Vasconcelos, do Instituto DimiCuida, uma instituição que busca conscientizar adolescentes e jovens sobre o uso seguro da internet, diz que tudo hoje acontece em plataformas aparentemente seguras.


Os desafios não estão mais na deep web. Estão tanto nas redes sociais mais comuns, mas principalmente em grupos fechados do Discord.

Fabiana Vasconcelos, psicóloga


Ali, os adolescentes são convidados para grupos secretos e começam a seguir desafios em formato de gincana. Os desafios começam leves e rapidamente evoluem para mutilações, ingestão de substâncias e risco de morte.


É muito mais difícil para os pais identificarem esses comportamentos porque tudo acontece longe dos olhos, com linguagem própria e em espaços privados. Muitas vezes os pais só descobrem que seus filhos estavam em grupos de desafios quando é tarde demais.


Ela explica que o cérebro adolescente está em formação, com picos de dopamina e impulsividade. "O sobrenome da adolescência é desafio." É natural que eles testem limites, o corpo, as emoções, os relacionamentos. "Precisamos formar pensamento crítico antes que algo grave aconteça."


No instituto, a prevenção começa pelas escolas, formando todos os profissionais, do porteiro à direção. Depois, o trabalho se estende às famílias.


Não adianta dar palestra. É preciso trabalhar em grupo, com metodologia participativa, ouvir os adolescentes de verdade. Mostrar que é possível pertencer sem se machucar.

Fabiana Vasconcelos

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98% das crianças e adolescentes acessam internet por meio do celular, de acordo com TIC Kids Online Brasil 2024

Imagem: Getty Images


Para o delegado Alessandro Barreto, coordenador do Ciberlab (Laboratório de Operações Cibernéticas na Secretaria de Nacional de Segurança Publica) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, comportamentos como o de Júlia são mais comuns do que se imagina.


O jovem entra nesses grupos para fazer parte. A internet oferece isso: uma sensação de pertencimento --mesmo que para isso ele precise se mutilar, humilhar ou ser humilhado.

Alessandro Barreto, delegado


Foi o que chocou Paulo: perceber que, para a filha, aquilo era normal, e descobrir que muitas amigas dela também se cortavam. Para o pai, é como uma "pandemia silenciosa de mutilação e crimes ligados à internet".


Segundo o delegado, a lógica é cruel: quanto mais extremo o ato, mais visibilidade. "Audiência virou moeda", diz Barreto. "O jovem transmite ao vivo, expõe sua dor, e os outros assistem como se fosse entretenimento."


Barreto ainda alerta para a falsa sensação de segurança. "Os pais acham que o filho está no quarto, está seguro. Mas hoje ele está mais vulnerável no celular do que numa balada."


Além disso, enfatiza que o tempo de uso da internet precisa ser controlado.


Nada de o garoto ou a garota passar de 10 a 15 horas conectado. Isso está errado. Use controle parental. Limite o tempo de tela. Mas, principalmente, converse. Quem ama protege, cuida e conversa.

Alessandro Barreto, delegado


Outra dica do delegado é que os pais estejam nas mesmas plataformas que os filhos para entender o ecossistema.


O que a automutilação quer dizer?

A automutilação pode ter diferentes motivações. "Um pedido de atenção, uma forma de aliviar o sofrimento, ou até um indicativo de ideação suicida. Mesmo quando não é uma tentativa de suicídio, é um fator de risco importante que precisa ser levado a sério", diz Danielle H. Admoni, psiquiatra da infância e adolescência pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Não é um gesto simples."


Quando um adolescente diz 'me interna', é um pedido de ajuda. Mas muitas vezes vem carregado de ambiguidade --do tipo 'resolvam por mim'. Eles querem ajuda, mas não sabem exatamente como receber. Querem o celular e, ao mesmo tempo, pedem socorro.

Danielle H. Admoni


A automutilação não desaparece da noite para o dia, mesmo com tratamento.


"Muitos adolescentes não querem fazer terapia, vão obrigados, contam metade da história. Às vezes, mesmo com medicação, a automutilação persiste. O processo é longo, exige paciência, vínculo e uma rede de apoio que não julgue."


Admoni diz que a vulnerabilidade do adolescente está diretamente ligada à imaturidade cerebral e à ausência de vínculos sólidos.


O cérebro adolescente ainda está se desenvolvendo. Eles são impulsivos, guiados por prazer imediato. Se não têm adultos por perto em quem confiem, tendem a buscar validação em grupos perigosos. Quando têm vínculos saudáveis, é menos provável que entrem nesse tipo de situação.

Danielle H. Admoni


O que dizem Roblox e Discord

Procurado por VivaBem, o Discord diz que violência e atividades ilegais não têm lugar na plataforma ou na sociedade.


"Investimos fortemente em ferramentas avançadas de segurança e sistemas de moderação que protegem nossos usuários ao redor do mundo, pois sabemos que manter a segurança online, no mundo de hoje, exige vigilância constante", afirma a plataforma.


Atuamos ativamente na identificação e remoção de conteúdos nocivos, derrubamos servidores problemáticos e, sempre que necessário, reportamos violações às autoridades competentes, em conformidade com a lei. Nossas ações proativas já ajudaram a evitar crimes antes que acontecessem e contribuíram para várias prisões em uma série de operações realizadas ao longo do último ano.

Discord, em nota.


Já a plataforma Roblox diz investir em segurança com moderação ativa, filtros de chat e controles parentais. Também monitora comunicações e colabora com autoridades. "Seguimos totalmente comprometidos em fazer da Roblox um lugar seguro e civilizado para todos."


Procure ajuda

Quem estiver passando por um momento difícil pode encontrar ajuda nos centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e nas unidades básicas de Saúde, ou no Centro de Valorização da Vida (CVV), que atende pelo telefone 188 ou pela internet.


*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados


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FONTE: www.uol.com.br

 
 
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